O arroz e o feijão: histórias de um encontro culinário

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Armazém de, entre outros produtos, arroz e feijão na Zona Cerealista. Antonio Favano Neto, um dos donos, é o terceiro da direita para a esquerda (foto: arquivo pessoal/Museu da Pessoa)

Por meio do projeto Armazém do Brasil, realizado em parceria com o Sesc, o Museu da Pessoa gravou cerca de oitenta horas de conversa com pessoas que trabalharam na Zona Cerealista de São Paulo ao longo do século 20*. Essa enorme área de comércio, que se desenvolveu a partir do pioneiro entreposto de alimentos instalado nas proximidades dos atuais Parque Dom Pedro II e Mercado Municipal nos anos 1860, já foi a principal responsável pela distribuição de alimentos para feiras e empórios não só da capital, como do interior e de outros estados.

A consolidação dos supermercados, mais ou menos entre os anos 1960 e 1970, foi alterando esse cenário, mas não impediu que o lugar continuasse a ser referência, inclusive do público comum, que o procura quando ingredientes difíceis de serem encontrados são requisitados pelas receitas. Algumas décadas atrás, no entanto, a região tinha função exatamente oposta. Era somente ali que se achava em grandes quantidades não o raro, mas o trivial da alimentação brasileira: arroz e feijão.

A dupla era “a” receita da Zona Cerealista. Ambos apareciam em numerosas variedades (hoje desaparecidas), vinham de diversas partes do país e eram embalados em juta por “saqueiros” profissionais que já deixaram de existir. Histórias relacionadas a esses dois ingredientes ainda básicos, embora hoje mais comprados em saquinhos de plástico no mercado, permeiam muitas das memórias de quem vivenciou o auge da Zona Cerealista e dão pistas sobre um caso até hoje sem solução: como, enfim, o arroz encontrou o feijão e viveram casamento tão longevo?

Memórias de um comércio arroz com feijão

“A tradição da Zona Cerealista vinha mais para os alimentos em grãos, cereais: feijão, arroz, milho, farinhas de trigo, de milho. A necessidade do povo naquela época fazia com que houvesse uma especialização da atividade. Quem sabia trabalhar com o feijão, ia buscar o feijão no interior a centenas e centenas de quilômetros de distância pela estrada de ferro existente. Na Mogiana, a 200, 300 quilômetros de distância. Depois surgiu o Sul de Minas, com grandes produções de feijão e arroz. Italianos, espanhóis, portugueses, saíam pra comprar o produto no interior, esperavam o trem semanal passar, carregavam a mercadoria, vinham aqui para a Estação do Pari ou para a Estação Barra Funda onde, com carros puxados a boi ou a cavalo, traziam a mercadoria para o centro da Rua Santa Rosa, que foi onde nasceu todo comércio, na Rua General Carneiro, Rua 25 de Março e Rua Cantareira.” [Ítalo Tucci (1930-2013), atacadista de cereais]

“E na Barra Funda, onde é o Memorial da América Latina hoje, lá tinha os vagões que vinham com arroz do Sul e vinham através do trem. E a gente ia lá com o caminhão carregar para trazer para cá para os comerciantes revenderem para feirante, para mercado. Naquela época nem tinha mercado, era mais empório que a gente falava. Isso aqui você brigava: ‘Pelo amor de Deus, deixa eu encostar meu caminhão para poder descarregar, você já descarregou dois, deixa eu descarregar um.’ Porque as portas são muito coladas umas nas outras. E vinha um monte de carro. Isso aqui que hoje você vê é tudo carro de passeio, antes você só via caminhões e caminhões. Na firma em que eu trabalhava, de segunda-feira chegava do Sul o arroz, que vinha de caminhão, vinham sete caminhões só de arroz, toda segunda-feira.” [Rubens Romano Ramos (1961), caminhoneiro e descendente de carroceiros da Zona Cerealista]

“Era mais arroz, feijão mesmo. Comprava de onde era mais barato, Rio Grande do Sul. Estado de São Paulo. O telefone funcionava. Ou às vezes vinham os caminhões e vendiam. E a gente vendia para outro estado também, Minas Gerais, Rio, no Brasil inteiro. Naquela época tinha muitos tipos de arroz, hoje arroz é um só. E feijão praticamente é um só também. Agora é arroz agulhinha e o feijão carioca. Naquela época tinha 20 tipos de feijão, uns 20 tipos de arroz, tinha de tudo quanto era estado também. Feijão tinha rosinha, roxinho, preto, bico de ouro, opaco, tinha diversos tipos mesmo. Todas as pessoas conheciam. Os tempos mudaram, vem esse arroz agulhinha agora que é um tipo só e bom. E feijão, o que mais sai hoje é carioca. Aprovou, né? Ou rende mais, talvez, na lavoura, não sei.” [Dionísio L’Abbate (1935-2016), atacadista de cereais]

“O feijão tinha diversos nomes curiosos: bico de ouro, porque ele tinha uma pontinha douradinha na vagem; o feijão rosinha, rosinha porque era cor-de-rosa; feijão jalo. Jalo, de onde vem? Jalo em italiano é amarelo. Depois tinha o feijão lustroso, que era um feijão cor de café, de alta produtividade. Tinha o mulatinho, e vai por aí afora. Tantas e tantas qualidades que eram produzidas e hoje nós estamos todos no carioquinha, e o outro feijão que é o preto, altamente consumido no estado do Rio de Janeiro. Está aí a história do cereal nos últimos anos.” [Ítalo Tucci (1930-2013), atacadista de cereais]

“Quando você recebia um caminhão de feijão, às vezes, vinham 10, 12 tipos de feijão. Tinha uma tábua quadriculada com pequenos buracos, parecia um jogo de dama, e o chapa passava, você furava o feijão e cantava pra ele: ‘Carioca!’ ‘Chumbinho!’ ‘Lustroso’, e no armazém você ia pondo separado porque aí os feirantes vinham e escolhiam. E começou a entrar esse feijão rajadinho. A gente guardava como rajadinho. E não tinha saída, feirante não queria, mas o pessoal da Baixada Fluminense vinha e comprava o feijão mais barato que tinha na Santa Rosa. E a gente dizia: ‘Ó, tem o rajadinho aí.’ E eles levavam. E a gente mudou, quando entrava feijão fazia assim: ‘Separa pro carioca!’, que era carioca que comprava. E pegou o nome de carioca o feijão e dominou. Dominou porque ele realmente é bom.” [Antonio Favano Neto (1935), atacadista de cereais]

“Houve uma mudança muito grande nos hábitos e costumes do consumidor brasileiro com as novas variedades que foram colocadas. O feijão tinha uma variedade enorme, 15, 20 qualidades de feijão. A Embrapa desenvolveu o produto de alta produtividade, hoje conhecido como carioquinha. É um produto que vai persistir por muitos e muitos anos como preferência do público. Ele é macio, ele é gostoso, ele é fácil de produzir. Daquelas 15 variedades substituiu 14 e ficou sozinho.” [Ítalo Tucci (1930-2013), atacadista de cereais]

O carioquinha foi a revolução. No Brasil houve duas revoluções: quando acabou o arroz amarelão, que veio o que a gente chamava de arroz americano, que é o agulhinha, que acabou com todos os outros arrozes, e o carioca, mas o carioca foi um aborto da natureza. Muita gente fala que o carioca foi o Instituto Agronômico de Campinas que fez. Não, o carioca não foi feito por ninguém, quem fez o feijão carioca foi a natureza e depois o Agronômico de Campinas aperfeiçoou. O feijão carioquinha é uma mistura de pólen do feijão chumbinho com o bico de ouro que existia na época, o pólen se misturava e começou a dar um feijão rajado miúdo.” [Antonio Favano Neto (1935), atacadista de cereais]

“Há 40 anos, os grandes centros produtores eram Minas e Goiás. Havia um arroz chamado amarelão, que era produzido ali. Mas há 20 anos, surgiu uma semente americana, de maior produtividade. Um grão de arroz branco, muito bonito, sem manchas, e encontrou o clima adequado no Rio Grande do Sul. Com maiores áreas plantadas no Rio Grande do Sul, é claro que houve uma transformação de hábitos. O povo passou a preferir o tal arroz de semente americana em detrimento do arroz dos estados de Goiás e Minas. Esses estados passaram a produzir soja e foi pra pecuária também.” [Ítalo Tucci (1930-2013), atacadista de cereais]

“Na região da Zona Cerealista, cada rua tinha um tipo de mercado. Uma rua era só arroz e feijão. A outra rua mais pra frente era só cebola, cebola e alho. E, na época do meu pai, tinha uma série de costureiras para restaurar a sacaria, que compravam da primeira viagem, da segunda viagem. Sempre rasgava. E até era costume, por exemplo, o saco de feijão furado. Quando está descarregando, fura um saco, e eles vão colocando aqueles quadriculados. E aquele furo que era feito, o meu pai remendava, costurava e revendia. Sempre tinha um furo. E era por escalas. A primeira sacaria, quando ela era zero quilômetro, ela ia com café ou arroz, que não podia ter furo nenhum. Quando vinha pra cá, rasgava, tinha que remendar. Depois de remendado, era classificado saco para feijão, então a gente vendia para quem plantava feijão. Voltava de novo, era furado na conferência, rasgado, aí a gente vendia para classificação para milho, que era uma sacaria mais judiada. E como o grão do milho era maior, então ele não escapava dos rasgos que tinha, entendeu?” [Gines Perez (1965), filho e neto de saqueiros, atualmente carpinteiro]

“O meu pai ia para o Mato Grosso e começou a ver o cultivo de arroz lá. O meu pai foi um dos pioneiros, inclusive antes do Brejeiro, antes do Tio João, o meu pai inovou, ele começou a empacotar os saquinhos de arroz de dois e cinco quilos. Porque antigamente você só conseguia sacas de 60 quilos de arroz e você só comprava em feira. Então, quando chegaram os supermercados na década de 1970, você comprava Arroz Boa Luz de dois e cinco quilos, porque a dona de casa não tinha isso, ela comprava de quilinho só em feira livre. Na realidade, a Boa Luz é o que é hoje graças aos feirantes, ele chegava seis horas da manhã e trabalhava aqui até onze horas da noite, atendendo feirantes.” [Rosana Leddomado (1964), comerciante de cereais e filha do fundador do armazém Boa Luz]

“O atacado perdeu muito por causa do supermercado. Hoje mesmo, você não vê muito feirante, pouco feirante que você tem aqui. Hoje o feirante vem aqui, ele pega dez sacos de cebola para vender. Naquela época não. O cara comprava 100 sacos de arroz, 100 sacos de feijão, 50 de farinha de mandioca, 50 de fubá, os caras compravam muito, os feirantes estocavam. Hoje não, os feirantes vêm aqui e compram, hoje você vê que a feira caiu muito por causa dos mercados fazerem tudo o que eles fazem. O mercado hoje domina tudo. Poucos mercados hoje vendem na conchinha, que é o que o feirante fazia, ele vendia na conchinha. Na época da sua mãe, do seu pai, do pessoal mais antigo, era tudo na concha.” [Rubens Romano Ramos (1961), caminhoneiro e descendente de carroceiros da Zona Cerealista]

“E meu pai foi trabalhar com um tio meu, que inclusive funciona até hoje aqui na Zona Cerealista, a Lins. E aí ele ficou dois anos com esse meu tio. Ele começou com o meu tio e queria ser de igual pra igual, porque o meu pai viajava muito pra ficar especializado em arroz, ele adorava o cultivo de arroz. Então ele ia, procurava, porque não podia passar. O arroz ficava no Sul e não tinha como, tanto é que tinha que colocar peixe em cima porque na fronteira não passava para São Paulo. Então o meu pai se especializou mesmo, a Boa Luz é o que é por causa de arroz.” [Rosana Leddomado (1964), comerciante de cereais e filha do fundador do armazém Boa Luz]

“Nosso comércio está baseado nisso, no alimento, no arroz, no feijão, nos grãos e nas especiarias que dão o tempero.” [Ítalo Tucci (1930-2013), atacadista de cereais]

“Alguém tem que ver esse trabalho, quem sabe, tome gosto e não deixe a Zona Cerealista morrer, que não fique lá, que vá para algum outro lugar, mas que tenha esse segmento, porque uma coisa é certa: arroz e feijão, quem que vai parar de comer? Alho que vai no arroz e no feijão, cebola que vai no arroz e no feijão, que vai na carne, que traz o arroz e o feijão, tem que ter alguma distribuição. Vai ser direto do produtor, do agricultor? Eles não têm alicerce para isso, então, tem sempre que ter uma distribuição. Eu acredito que a Zona Cerealista vai continuar, mas tem que começar a ter um pessoal mais jovem.” [Paulo Celso Theophilo (1955), importador de produtos e especialista em bacalhau]

 

O caso do encontro do arroz com o feijão

“O motivo de o arroz e o feijão ser a base da alimentação brasileira tem uma parte de sabedoria popular. O casamento do arroz e feijão, que o arroz é um cereal e o feijão não é cereal, é uma leguminosa, é o único casamento no mundo de que a dona de casa de manhã faz o arroz e feijão pro almoço dos filhos e faz a mais pra jantar do marido, pra família, e, na hora da janta, ela pega a marmita do marido, lava, pega o arroz que ela fez de manhã e o feijão, põe na marmita, frita um bife e um ovo, põe dentro, fecha a marmita. O marido leva pro serviço sem geladeira, esquenta e está bom.

Então naquele tempo não tinha geladeira, qualquer outra mistura que você fizesse, arroz e lentilha, arroz e grão-de-bico, arroz e qualquer outra coisa, em 12 horas no verão você ir pra roça ou ir pra tua fábrica e esquentar a marmita, está estragado. O arroz e feijão, um bife e um ovo frito sem geladeira, põe na marmita, à noite dorme, leva pro teu serviço, na hora do almoço esquenta, pode comer que está bom. O brasileiro não aprendeu a comer arroz e feijão por isso ou por aquilo, é porque não estragava e naquele tempo não tinha geladeira. Então, qualquer marmita que você levasse, qualquer uma, se você pegar arroz, feijão e frango ela estragava. Você põe arroz e lentilha, estraga. O arroz e feijão até hoje, quem está no sertão e tudo o mais, põe arroz, feijão, um bife, farinha de mandioca, 24 horas pode comer que está bom. Este é o motivo do arroz e feijão.”

Antonio Favano Neto (1935), atacadista de cereais

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* Essa e outras histórias sobre como o arroz e o feijão fizeram a história da Zona Cerealista, em São Paulo, estão no livro Armazém do Brasil: Memórias do Comércio da Zona Cerealista, que foi lançado pelo Museu da Pessoa, em parceria com o Sesc e a Fecomércio, no dia 20 de fevereiro e pode ser baixado grátis na App Store ou no Google Play.

Veja a coleção completa, com mais histórias de arroz com feijão,
no site do Museu da Pessoa.

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