Uma dorzinha no “voltar para casa” (ou um amor de domingo)

Todos os dias, a escritora Noemi Jaffe publica em seu Twitter etimologias que acompanho agradecida. É como se o dicionário abrisse a si mesmo na sorte da vez. Esse grifo dá voz ao sentido profundo das palavras e não raro arranca de mim um sorriso ou me faz erguer as sobrancelhas. No dia 25 de janeiro, a autora escreveu que “como há lombalgia: dor na lombar; cefalgia: dor de cabeça; oftalgia: dor nos olhos, há também nostalgia: dor do nóstos ou voltar para casa”.

Embora a nostalgia paute bastante o trabalho no Lembraria (e entre aspas atormente alguns textos no Do que eu falo quando eu falo de comida), nunca tinha parado para olhar a palavra do jeito analítico com que vemos uma roupa no provador do alfaiate, na raiz, antes de sair por aí cobertos de memórias. Esse tipo de melancolia conhecemos bem. A dor “no voltar para casa” às vezes se manifesta também no corpo. É sentimento que surge do desejo de tirar a poeira do que existiu ou foi imaginado e que ajuda na hora de contar a própria história. “No tempo em que eu era assim”; “desde aquele passado (im)perfeito, deixa eu te contar como cheguei até aqui com essas marcas e o que me faz gostar ou não gostar de queijo com goiabada”; “esse cheiro me levou para a hora da merenda na escola”.

Eu sinto nostalgia aos domingos. Uma dor miúda tratada em almoço demorado, em geral na casa dos meus pais e observando o modo como minha filha pequena coleta os retalhos que no futuro darão a ela o manto (nostálgico) para usar como quiser. Um manto todo escrito nesse tom que você lê agora em minha voz.

O domingo é uma enorme licença poética. Se fosse verbo, seria divagar. E devagarinho. No privilégio das manhãs tranquilas, expectativa baixa, sossego nas ruas, um quase frio (adoro acordar cedo no domingo quando ainda não faz calor, sair para comprar pão e mortadela e na volta percorrer café da manhã demorado lendo jornal de papel). É “muito nada” para fazer, não é? Então vem aquela lentidão à mesa (escrevi aqui sobre o valor emocional que essa “demora” guarda, elevando significativamente o patamar de qualquer refeição), os gestos repetidos e, no fim da tarde ou à noite, a gente começa a recomeçar e usa essa energia para ao menos tentar combater uma certa melancolia.

No almoço de domingo do jeito que cada um preferir, em geral está embutido um desejo de pertencimento. E não dá para negar que nesse lugar construímos memórias importantes, que o diga nosso Dicionário das Comidas Impossíveis, cheio desses almoços, reais ou figurados. Sozinhos e acompanhados.

Agora, se por um lado compartilhar uma refeição é de grande cumplicidade e abrir mão de ficar só para estar com o outro é um gesto largo, também penso que às vezes é preciso praticar o desapego e compreender ausência, sabe? Voluntária ou aquela aberta pelas coisas da vida, pelo incontrolável. Estar com o outro no sentido de compreensão e entendimento é muitas vezes aceitar que ele, naquele domingo, talvez prefira ficar sozinho.

Fora isso, o que o almoço de domingo de cada um comporta é uma das demonstrações mais profundas de intimidade – circunstancial ou perene. É uma versão aumentada da intimidade de dividir a sobremesa. Às vezes ruidosa, em família ou amigos; às vezes quieta. Calma. Com seus poucos e bons. Para qualquer situação, recomenda-se quem sabe um creme de mascarpone com geleia de goiabada, duas colheres e um amor de domingo, junto ou sozinho, na voz de Etta James a preencher todos os vazios.

***

Curiosidade: neste estudo da Universidade de Chicago, os pesquisadores tentam compreender a relação entre a harmonia de uma refeição e a comida escolhida por seus participantes. Alguns experimentos mostraram que quem consome pratos diferentes demora mais a se entender em um encontro do que os que fazem escolhas iguais. Isso me lembrou duas coisas: 1) a comida e a “felicidade conjugal” (clique para ler); 2) o que disse uma vez, em entrevista, um barman convidado a perfilar os tipos que frequentam os bares, identificando sua bebidas preferidas. Segundo ele, jovens funcionários (as) tomando um drinque com seus chefes em geral esperam que este faça o pedido e dizem: “o mesmo para mim”.

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