Cadernos de família, livros de receita: modo de usar

Por escrito, as receitas são sempre mais bonitas, gostosas e possíveis do que na realidade? Talvez. Depois de quebrar os ovos, enfarinhar o avental e derramar açúcar na massa do bolo exatamente como mandou aquele caderno que está na família há tanto tempo, o que poderia dar errado? Tudo.

E como explicar um resultado ainda melhor, se eu precisei deixar a fôrma por mais tempo no forno, se a calda de tangerina rendeu menos do que o esperado, se estava chovendo e a tia-avó recomendou por escrito que a gente passasse longe da umidade?

E se eu chorei o tempo todo, me distraí e perdi a conta das xícaras de farinha? Adivinhei o ponto (na ponta do dedo e da língua), e ainda assim deu tudo certo. Não tem explicação. O importante é compreender a ideia. A receita é um caminho cheio de variáveis, e segui-la à risca, sem questionar, ajustar, adaptar ou mudar o tom da narrativa pode ser um desastre.

Em um programa do canal público norte-americano PBS, o cozinheiro e apresentador francês Jacques Pépin falou sobre o que ele chama de paradoxo das receitas. Um paradoxo atemporal. Pépin tem 81 anos. Nasceu na França, mudou para os Estados Unidos em 1959 depois de trabalhar no restaurante de sua família no interior e também em Paris. Foi, ainda, cozinheiro pessoal de chefes de estado. Charles de Gaulle era um deles. Na América, foi grande amigo de Julia Child (os dois publicavam pela mesma editora) e seguiu estudando, escrevendo livros (e receitas) e apresentando programas de televisão.

Sobre o paradoxo das receitas e desse lugar de onde escreve há tantos anos, Pépin fala o que sabemos e muitas vezes queremos negar: na realidade e entre aspas, tentar reproduzir o gosto ideal atrapalha nossa busca por sabores possíveis (e impossíveis); perturba a nostalgia idealizada; dá nos nervos de quem tem vontade de atingir a perfeição ao reproduzir um gosto aprisionado em um momento que não existe mais.

A receita sempre vai dizer “faça isso daquele jeito”, lembra o cozinheiro. Só que, para obter o resultado desejado, será preciso mudá-la a cada execução. O balé nunca é o mesmo, seja em casa, seja nos bastidores da coreografia ensaiada para a função de um restaurante. Tudo depende. Depende da umidade do ar, da estação do ano, da maturação de um ingrediente, da mão do cozinheiro. Dos humores do fogão.

Inspirado pelo vídeo de Pépin sobre as receitas escritas, o Lembraria acha que elas, caseiras ou não, até podem nos ensinar a executar um bom prato de comida ou nos servir como guia, mas antes de tudo são o retrato de um tempo. Funcionam como registros da história da cozinha. Keep calm e continue conosco:

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Há alguns anos, as antropólogas Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa estudaram quase 300 títulos de livros culinários publicados no Brasil entre o início do século 20 e o do 21 (um dos artigos resultantes dessa pesquisa, Culinária de Papel, pode ser lido aqui). Ao percorrer essa “linha do tempo”, dá para imaginar de que matéria são feitas as receitas de cada época, por exemplo.

Em linhas gerais, tudo começava mais ou menos nos livros e receitas de casa e família. Fórmulas que falavam para iniciados, gente que precisava ficar em casa e cozinhar. Muitas vezes, a realidade exigia matar o frango do dia e havia poucos processados (e nenhum superprocessado) no armário. Em geral, eram escritos de e para mulheres cozinheiras donas de casa ou empregadas. Coisa prática.

Depois, perto dos anos 1950, a vida privada começou a ser facilitada por produtos industrializados, pelos eletrodomésticos, pela linha branca. Segredos de liquidificador aplicados ao modo de fazer. Vamos “ganhar tempo”, qualidade de vida etc. A ideia era cozinhar menos e consumir mais.

Os primeiros livros pautados pelo corpo – os escritos dietéticos – fizeram sucesso desde os anos 1970 e 1980. A comida “certa” para cada objetivo, até hoje uma isca manjada. A culinária vegetariana também já era uma preocupação naquele tempo. Aliás, cuidado, solução, preocupação, praticidade. Tudo ok. Mas e o prazer? Cadê? E o cozinhar por gosto e com a consciência de que tem um valor não só para vender a quem pode comprar, mas para consumo próprio? E por que tanta gente, principalmente a mulher, preferia dizer que não sabia cozinhar, que não tinha tempo; queimar o avental a ficar em casa nesse serviço tão… doméstico? Sabemos a resposta. Sinal de um tempo.

Talvez o status tenha começado a mudar um pouco depois das décadas de 80 e 90 do século passado, quando os ensinamentos tradicionais misturaram-se nas prateleiras às receitas internacionais, uma viagem pelas cozinhas do mundo. As capas dos livros de receita roçaram as dos relatos de viagem. Não demorou para que muita gente passasse a querer ter livro de de culinária não só na biblioteca e na cozinha, mas também na sala de estar. Ofélia, Julia Child e Pépin ganham novas companhias na televisão e no impresso. Jamie Oliver. Nigella. Bourdain. Homem que cozinha é legal; comer é legal; viajar para comer é legal.

Agora, na segunda década dos anos 2000, basta uma olhada nos mais vendidos da Amazon para ver que estamos gostando mais de “pensar a cozinha” e que tudo bem ser imperativo ficar em casa. Fazer a própria comida. Queremos receitas que inspiram um cozinhar prazeroso e inteligente. Rita Lobo, Bela Gil, Ottolenghi e outros convidam a um fazer sem preguiça, com gosto e com “o que tem na geladeira”, no quintal. A “comida afetiva” e “de verdade”.

Cozinhar não é mais obrigação faz tempo, e há – não precisamos gostar e não podemos negar – os entusiasmados com a ostentação, não é? Comer, fotografar, publicar, curtir (pode bocejar aqui). Fazer seu próprio pão, o macarrão, plantar e colher a salada? Bom, muito bom. Só é melhor a gente se conter para não começar a fazer o próprio prato, de porcelana.

Converter o canal de YouTube com estética retrô em mais um bestseller? Já vimos. Aliás… passar vários minutos do dia assistindo vídeos de receita on-line? Receitas que nunca vai fazer? Acontece, bem como virar as páginas do livro para se inspirar. É animador, contudo, ver crescer a procura por receitas que contam histórias, vão além do passo a passo e são feitas para motivar o leitor a ser mais destemido ao fogão e a fazer o que ensina Pépin: ler, absorver e fazer do seu jeito o melhor com aquilo que puder ter. Igual a quase tudo na vida. Esta, aliás, se tivesse manual, talvez ninguém fosse abrir. Só se tivesse foto, vídeo, campo para comentar sem ler. Ops, isso é outra história (do nosso tempo).

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