Depois do ótimo Cartas Extraordinárias, Shaun Usher, pesquisador e organizador, assina Listas Extraordinárias, que não é menos distrativo. O prazer de virar as páginas equivale a devorar chocolates na cama sem precisar saber que horas são. Os dois são publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
No primeiro livro, Usher trabalhou correspondências em contextos históricos variados. Quem assiste à série The Crown não precisa se esforçar muito para imaginar a rainha Elizabeth mandando pelo correio sua receita de scone ao presidente dos Estados Unidos. No segundo, usando o mesmo critério de escavação da história escrita, os achados compõem uma seleção de listas. O sabor é parecido.
Você me pergunta se as listas falam de comida e de bebida. Algumas sim – em comparação com o primeiro livro, a proporção é muito maior. Meu levantamento é ligeiro, mas penso que as que falam de comida são quase todas feitas por escritores, gente que “manuseia a palavra com esmero”. Separei algumas.
Em J’Aime, Je N’aime Pas, de 1977, o sociólogo Roland Barthes fala do que gosta (café, salada, canela, pimentão, marzipã, sobremesa, pera, cereja, pêssego etc.) e do que não gosta (morango, noitadas com gente que ele não conhece etc.). Depois, pondera: “Gosto, não gosto: isso não tem importância para ninguém; aparentemente, nem tem sentido.”
No dia 13 de janeiro de 1737 saiu no jornal “The Pennsylvania Gazette”, assinado por Benjamin Franklin, o Dicionário do Beberrão, que tem 228 termos. Na letra V, por exemplo, ele [o bêbado] está com seus Vapores; tem álcool nas Veias; está Vermelho; Viajando; bem de Vida. No Z, Ziguezagueando, corajoso e um pouco Zonzo. Para o autor, não há “nada mais parvo do que um bêbado”.
Em 1960, em troca de cartas com sua editora, Julia Child enviou uma lista de 28 sugestões de título para seu livro mais importante. “Dominando a Arte da Culinária Francesa” era o último e, na foto, aparece manuscrito. Teria sido uma anotação de Julia depois de datilografar tudo ou chegaram a esse nome avaliando os demais? Sim, porque foi esse o escolhido (“Mastering the Art of French Cuisine”). A carta começava com um querida senhorita tal e: “Títulos: Acho que o título não deve assustar o público e que o subtítulo não deve ser muito pretensioso (…).”
F. Scott Fitzgerald aparece no livro mais de uma vez. Na página 267, contudo, o escritor apresenta uma série de receitas absurdas para aproveitar as sobras de um peru. “Não há uma que não tenha sido testada – lápides em todo o país atestam isso.”
Tentativa de Inventário, de 1974, do escritor francês Georges Perec. O título original é “Tentativa de inventário dos alimentos líquidos e sólidos ingeridos por mim no decorrer do ano de mil novecentos e setenta e quatro”. Perec devia andar com um caderninho de anotar a vida em que registrava coisas do tipo “uma fruta fresca, dois morangos, uma porção de groselhas, uma laranja, três “mendiants” [mistura de amêndoas, figos secos, avelãs e passas].
Na lista de alimentos escrita no verso de uma carta que tem a data de 18 de março de 1518, atribuída a Michelangelo, os primeiros itens são dois pães, uma jarra de vinho, um arenque e tortelli. Todos ilustrados. Ele também relaciona salada, mais pão e vinho, espinafre e anchovas. Ninguém sabe se é inventário ou planejamento de refeição ou de compras.
De Henry David Thoreau, o autor de “Walden” (1954), sobre a “vida simples” que levou em um bosque, divulgou três anos depois uma lista do que ele levou consigo em uma viagem ao Maine em julho de 1957. Passou doze dias por lá com um “companheiro de viagem, uma canoa e um guia indígena”. Em seu farnel de comida havia, entre outras provisões, 12,5 quilos de pão macio com casca; sete quilos de carne de porco; um quilo de café; um litro de fubá para fritar peixe e limões para “limpar a carne de porco e melhorar a água morna”.
Termos do Trinchador, de 1508, é de um editor chamado Wynkyn de Worde, holandês que se estabeleceu em Londres no fim da Idade Média. Sua obra inclui um livro dedicado à arte de trinchar carnes “The Boke of Kervynge” (O Livro de Trinchar). Entre linguados temperados e hadoques guarnecidos surgem cervos despedaçados, porcos lavados e galinhas agarradas.
Tem Mark Twain amaldiçoando cada refeição atravessada durante uma viagem para a Europa no fim da década de 1870: “[…], há uma variedade tão monótona de pratos inexpressivos […] Três ou quatro meses dessa enfadonha mesmice acabam com o mais robusto dos apetites.” Quando estava perto de voltar para os Estados Unidos, o escritor norte-americano colocou no correio um cardápio, rascunhado por ele, de tudo o que gostaria de comer em casa (p.125). Purê de batata, ketchup, leitelho e leite gelado doce figuravam no menu.
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