
O verbo dos livros é “livrar”. O livro livra o leitor e o caminho, abrindo passagem no labirinto particular. E há mesmo algo de especial nos livros pequenos e nos textos avulsos: eles deitam no peito uma sensação de completude, de ir até o fim. É uma sensação parecida com a de cozinhar a refeição, larga, grande e certa, e ainda deixar (ou encontrar, depois de tudo) a pia limpa para o cafezinho por vir. A vastidão dos chamados livros curtos está na capacidade de nos dar muito em poucas páginas.
Por isso eu escolhi hoje um livro de receitas improváveis (ou não), para o questão de lugar-comum, uma indicação de caderno de receitas nada ortodoxo. Não tem medida e os ingredientes são muitas vezes impossíveis. Chama-se Livro de Receitas para Mulheres Tristes, do colombiano Héctor Abad (Companhia das Letras; só e-book ou, em papel, nos sebos). Abad dedica os textos para as mulheres, em especial suas “seis mães” – ele tem cinco irmãs.
O livro é uma coleção de notas supostamente infalíveis para questões de amor, dor e ausências várias. Aflições com a imagem, o envelhecimento e a incomunicabilidade. Mistura ironia, delicadeza e um texto de humor fino. Lê-se em duas horinhas com um sorriso no rosto diante dos desafios e dos questionamentos que desencadeiam involuntariamente…
Em dado momento, parece uma gincana o que uma moça precisaria fazer para que seu companheiro, praticante de silêncios, falasse com ela. Então, o autor alivia a tarefa: se tudo isso parece complicado demais, lembra do seguinte: “se quiser que outros lábios sejam generosos, abra também os seus”.
Para quem deseja destravar a fala de um companheiro praticante de silêncios, recomenda:
Um dia você vai querer, por motivos que você e eu sabemos, que seu austero comensal solte a língua e pronuncie recônditas palavras. Alerto que, se quer forçá-lo, por força terá também que usar o sangue.
Já decidida, peça ao carrasco das reses um lombo um tanto curado de novilho adulto (de pelo menos três anos). Corte-o em fatias da espessura dos quatro dedos de sua mão, excluindo o polegar. Deixe-as sol a sol ao ar livre mas à sombra, só cobertas com uma rede para afastar as moscas. Arranje também muita pimenta-do-reino que, pouco antes do banquete, você triturará no pilão sem deixá-la muito fina.
Ossos e miúdos do bovino servirão para fazer um caldo forte. Cada fatia receberá uma grande colherada de pimenta moída.
Estando já o comensal à mesa, entretido com alguma alface, ponha na frigideira azeite e manteiga e coloque delicadamente os pedaços de lombo sem mexê-los, nem sequer tocá-los, a fogo vivo, um minuto e meio em cada lado. Depois de três minutos, tire-os do fogo e, reservando a carne num prato, cubra cada fatia com a porção de pimenta estipulada.
Despeje então uma taça de brandy bem cheia na frigideira, e junte um pouco daquele caldo, como já disse, bem forte. Deposite os pedaços do lombinho de volta na frigideira e deixe o líquido evaporar bem devagar por mais três minutos. Findo esse tempo, acrescente uma colher de creme de leite para cada fatia de carne e deixe o molho engrossar sem que levante fervura.
Ponha tudo numa travessa e leve à mesa. Acompanha-se com pão e purê de batata. O vinho deve ser tinto, de uvas vindimadas antes do quinto ano e depois do terceiro. Esse líquido rubro mais o rubríssimo sangue da rês afrouxarão a língua do comensal mais prudente e taciturno.
A receita é segura. Mas, para que seja infalível, há uma condição a ser levada em conta: o creme do molho deve ser do leite da mesma vaca que pariu a rês sacrificada. Não sendo assim, o comensal de qualquer modo falará, mas talvez não diga o que você espera.
Se quiser que outros lábios sejam generosos, abra também os seus.
***
Na apresentação, porém, Héctor Abad avisa:
Ninguém tem a receita da felicidade. Na hora infeliz, de nada valerão os mais elaborados cozidos de contentamento. […] Constatei que em minha arte poucas regras se confirmam. Desconfie de mim, não cozinhe minhas poções se a sombra de uma dúvida a assaltar. Mas leia este falacioso ensaio de feitiçaria: o encantamento, se valer, nada mais é que seu som – o que cura é o ar que as palavras emanam.