Morte (e vida) do leiteiro

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O retorno do homem do leite: a nostalgia entregue na porta de casa

Na cidadezinha de Troy, no estado de Nova York, nos Estados Unidos, um escritor chamado Dennis Mahoney encontra na varanda de casa, logo cedo, não só as contas a pagar e, quem sabe, o jornal. Ali, semanalmente, o leiteiro do laticínio Meadowbrook Farm Dairy chega para recolher garrafinhas vazias e, no lugar delas, deixa outras, cheias de leite fresquinho, tirado das vacas que pastam em uma fazenda de Clarskville, a pouco mais de 30 quilômetros.

No ramo da entrega de leite desde 1926, a Meadowbrook continua a atrair novos clientes, como Mahoney, que, apesar da alta taxa cobrada, estão interessados em consumir um produto não industrializado e processado na região, mas também em reviver um costume que parecia estar (ou ainda pode ser) extinto. “O leite tem sabor notoriamente melhor que os comprados no mercado. […] Há algo profundamente satisfatório em ter aquela caixa de leite à moda antiga na varanda e em conhecer o homem da entrega. Toda a experiência dá ao leite personalidade”, diz Mahoney.

Essa história foi contada na reportagem O Retorno do Homem do Leite, publicada no site americano Eater em setembro último. Assim como o entrevistado, o próprio texto se apoia na ideia de que um dos motivos para essa moda da entrega do leite – além da Meadowbrook, atuante no interior do estado, a Manhattan Milk tem feito o mesmo serviço em plena cidade de Nova York – relaciona-se à tendência de valorizar e tentar recuperar preceitos alimentares do passado, quase sempre associados ao frescor dos ingredientes e à suposta singeleza das antigas relações entre produtores e consumidores.

O que era cotidiano “naqueles tempos”, ao ser reproduzido hoje, ganha o charme do rótulo de “tradição” e dá vida nova (ainda que permeada de inevitáveis atualidades, pagamento on-line, pedido por e-mail) a um ritual nostálgico-imaginário de uma época que, certamente, nem vivemos, mas da qual sentimos saudade. Saudade terceirizada, vinda dos relatos do “tempo bom” em que o leite e tantos outros alimentos chegavam mesmo cedinho, trazidos pelo seu João, pelo seu José, e em que ninguém se importava com isso – ter esse serviço (que, aliás, nem poderia ser feito de outra forma) era, como matar o porco e depenar o frango, parte da vida vivida, trivial, não pensada.

Até meados do século XX, em cidades ainda sem supermercados, era parte do impensado dia a dia de todo mundo receber a visita frequente do leiteiro (e esse costume resiste até hoje, embora raro, na capital paulista e até em Londres), ou mesmo das vacas e cabras leiteiras, que vinham logo cedo balançando a campainha pelas ruas, levantando poeira e atrapalhando o sono de muita gente. Em São Paulo, alguns colunistas de jornal e memorialistas deixaram esse costume registrado em meio aos relatos sobre a cidade de antigamente.

Um dos mais interessantes está no pioneiro diário Correio Paulistano e foi assinado por Segismundo, pseudônimo de Pedro Taques de Almeida Alvim, famoso jornalista do século XIX, que mantinha a coluna satírica Um Roceiro na Capital nos anos 1860. Por meio dela, o caipira Segismundo escrevia cartas ao compadre que morava no interior, contando as novidades da capital que passava por intensa transformação. Em 23 de janeiro de 1868, quando supostamente se hospedava no Hotel de Itália, do italiano José Maragliano, um dos mais respeitados do período, ele falava do barulho das ruas movimentadas logo pela manhã, causado em parte pelos “galegos” que tocavam as vacas leiteiras pelas ruas.

“Depois que me vi safo dos amoladores, ceei macarrão de Itália, bebi vinho de Barbera, e fui dormir o sono da inocência em um colchão de mola que faz a gente dar pinotes, invenções dos senhores estrangeiros, para os quais é tudo de mola. Duvido que a comadre Cecília se ajeitasse com os tais colchões de mola; dorme-se aos trambolhões a modo de quem viaja nas diligências de Jundiaí para Campinas, nas quais é preciso fazer a diligência parar para não levar alguma cambalhota.

Ainda não tinha cantado o galo da hospedaria, e já ouvia um rumor de todos os diabos; diligências para a Luz (ainda a pataca por cabeça), os galegos a tocarem as vacas taurinas, de campainha no pescoço, à maneira de madrinhas de tropa. […] Assim como, compadre, uma formidável galinha que aqui achei no terreiro do sr. Maragliano, por apelido ‘conchinchina’. Oh! que tremendíssimas galinhas, compadre, são perus, não galinhas, botam cada ovo que é um despropósito; disseram-me que botam 2 a 3 por dia, pela minguante. Talvez sejam também de mola, não sei.” *

Décadas mais tarde, Jorge Americano, que reuniu no livro São Paulo Naquele Tempo suas lembranças da cidade na virada para o século XX, contou em detalhes como seu José leiteiro, que ainda tocava pelas ruas duas vacas e dois bezerros, fazia a entrega em sua casa.

“Às 6 horas da manhã, bateu à porta seu José leiteiro. Trazia às costas a lata de leite das vacas do estábulo, um funil e uma colher redonda, para tirá-lo da lata e despejar na garrafa que o freguês trouxesse. Vinham também duas vacas e dois bezerros. Narcisa trouxe de dentro o copo de vidro graduado e o caldeirão. Seu José fez o bezerro chupar a teta da vaca e se pôs a mondá-lo, jorrando o leite no copo graduado. Encheu um litro e despejou no caldeirão. Jorrou mais meio litro no copo, que [a empregada] Narcisa despejou no caldeirão, disse ‘até amanhã’ e foi fazer ferver.”

Mais recentemente, o paulistano Álvaro Lopes também se lembrou da época em que se bebia muito leite de cabra, tirado da teta da própria, que subia em grupos pela rua Augusta, na região central de São Paulo. Filho do fundador da Casa Santa Luzia, ele recorda os tempos da entrega de leite, mais ou menos na década de 1930, em depoimento ao programa Memórias do Comércio, realizado pelo Museu da Pessoa em parceria com o Sesc desde 1994. O vídeo dele e de outros donos de mercados, restaurantes e bares de São Paulo que contam as transformações da cidade integram a próxima coleção do Lembraria para o Museu da Pessoa, que vai ao ar entre 24 e 28 de outubro. Por enquanto, apenas um aperitivo (com leite de cabra, entregue em casa):

Todo dia passava o homem das cabras, com seis, sete cabras vendendo leite. Ordenhava na hora, você ia lá com o copo, tirava o leite, tomava e levava pra casa. O leiteiro vendia leite da torneirinha da Vigor, um carro puxado por burro com um tanque. Essas são as coisas peculiares daquele tempo. Hoje o progresso é outra coisa. Naquele tempo, eu era garoto, pequenininho.

* A ortografia da língua portuguesa no século XIX foi adaptada para a atual.

*** O título deste texto foi inspirado pelo poema Morte do leiteiro, escrito por Carlos Drummond de Andrade em 1945. Ele pode ser lido na íntegra aqui, junto do curta-metragem Aurora, criado a partir dele, em 2007.

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