A memória de gosto da Ana Paula Amaral do Carmo tem sabor de despedida e de recomeço. Vamos deixar que ela conte a história do pêssego em calda que sua mãe lhe pediu e ela serviu em copo simples, desses de bar, como um último desejo. Ana é paulistana da Penha, nascida em agosto de 1971. Cresceu em São José dos Campos e hoje mora em Brasília.
A lata de pêssego em calda e a de creme de leite estavam abertas. Não consigo me lembrar se aos 13 anos eu tinha habilidade para manusear um abridor. Pairava no ar um silêncio, uma paz e uma estranheza. Na verdade, a estranheza era o meu medo de que repentinamente as dores que levavam minha mãe a gritar, tivessem cessado.
Foi então que ela me disse que queria comer pêssego com creme de leite.
A luz amarelada da geladeira clareou a noite que já adentrava a cozinha. Coloquei uma metade do pêssego, cobri com o creme branquinho e derrubei com certa delicadeza um pouco de calda direto no copo simples.
Eu a vi comer, delicada e demoradamente. Abraçou-me com igual demora com que sorveu o conteúdo que havia naquele copo de bar. Disse me amar com a doçura qual a calda.
Os gritos cessaram, dessa vez para sempre, pela manhã.
Minha filha tem quase os treze anos que eu tinha. Nunca lhe contei essa história. Ofereci simplesmente o mesmo doce, a mesma maneira de comer, agora já numa bonita cumbuquinha para sobremesa.
Um dia ela me pediu de presente de aniversário uma lata de pêssego em calda e outra de creme de leite. Soube então que o predileto e último alimento de minha mãe, misteriosamente, era o predileto de minha filha. Bem, foi com gosto que eu comprei o presente. E se eu contar que ela aniversaria hoje, você acredita?!
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Este depoimento deu origem a um verbete em O dicionário das comidas impossíveis, que surge das respostas ao questionário Fatias de memória.
Clique aqui para contar sua história e nos ajudar a preencher esse relicário.
Adorei o texto! Muito bom de ler!
Bjs
Amara
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