Flávia Pegorin foi buscar sua memória de gosto em Jundiaí, no jeito plural da vó Ondina: os pastéis recheados de carne moída que ela “fritava de dois em dois, usando garfo e colher pra virar, inundando a casa com o cheiro indescritível de óleo de milho quente e massa crocante”. Flávia é paulista de Santo André desde o alto verão de 1975. Passou a infância no Jardim Hollywood, em São Bernardo do Campo.
Vou na memória gustativa e olfativa mais antiga que eu tenho: o pastel da minha vó Ondina. Minha vó não era ótima de cozinha, era boa naquele trivial de dia a dia de quem nunca teve muito dinheiro mas tinha uma horta no quintal. Fazia um bom frango (que criava solto) e legumes “honestos”, como o chuchu colhido (ou roubado?) da cerca que dividia com a vizinha em Jundiaí.
Mas a minha vó era a rainha do “rodízio”, como ela chamava (e eu aprendi a chamar, mesmo sem ser), a máquina manual de abrir massa. Ela fazia a massa do pastel, então, juntando farinha, sal e água gelada. Ia mais alguma coisa que eu não sei o quê. Fazia a massa, abria até ficar fina e quase translúcida. Preparava a carne moída com ovo cozido e azeitonas picados bem miudinho e mais uns temperos. E acomodava a carne na massa comprida, aberta na mesa, como uma fila indiana de montinhos marrons suculentos. Aí virava a massa na metade, no sentido do comprimento, cobrindo a carne. E cortava os bocados com a “carretilha” (também o jeito que ela chamava e eu peguei), naquele caminho de ondinhas perfeitas pra selar os pastéis. Aliás, a minha vó Ondina sempre chamou no plural. “Vamos fazer pastéis?”. “Quer comer pastéis?”. Ela fritava de dois em dois, usando garfo e colher pra virar, inundando a casa com o cheiro indescritível de óleo de milho quente e massa crocante.
O sabor do pastel – dos pastéis – da minha vó nunca mais foram reproduzidos depois que ela morreu. Porque, mesmo imitando, a gente não consegue imitar. Estava na cabeça dela, nas manhas dela, no rodízio desengrenado e na carretilha velha, nos dedos tortos pela artrose e pela idade. Estava no coração dela de cozinhar pastéis pra gente ficar feliz.
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Este depoimento deu origem a um verbete em O Dicionário das Comidas Impossíveis, que surge das respostas ao questionário Fatias de memória.
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Lindo texto, uma descrição perfeita, deu água na boca… jornalista boa é assim mesmo!
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Flávia é uma joia, Maria Lúcia 🙂
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