Se a chuva chovia mansa o dia inteiro, o amor da mãe se revelava com mais delicadeza. O tempo definia as receitas. Na beira do fogão ela refogava o arroz. O cheiro do alho frito acordava o ar e impacientava o apetite. A couve, ela cortava mais fina que a ponta da agulha que borda mares em ponto cheio. Depois, mexia o angu para casar com a carne moída, salpicada de salsinha, conversando com o caldo do feijão. Tudo denunciava o seu amor. Nós, meninos, comíamos devagar, tomando sentido para cada gosto. Ela desconfiava que matar nossa fome era como nos pedir para viver. A comida descia leve como o andar do gato da minha irmã.
(…)
a madrasta montava a comida em cada prato. O arroz de um lado. O feijão ralo ficava ancorado no arroz, lembrando uma praia mansa com um mar negro, sem ondas. Na extremidade do oceano, uma ilha feita de abóbora, chuchu ou quiabo, segundo sua escolha. Um fragmento de carne – renda bem engomada – segurava o arroz. A fatia de tomate entrava como um sol, sobre o arroz em neve, colorindo seu império.
Vermelho Amargo (acima, trechos das páginas 35 e 38), de Bartolomeu Campos de Queirós (1944-1912), é descrito por Gabriel Villela na contracapa como uma fábula delicada como um arame farpado. É isso aí.
Livro publicado pela Cosac Naify. A edição que temos aqui faz parte de uma tiragem de 3 500 exemplares. Data de 2011 (em 2013 saiu a quarta reimpressão).